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Sorte

Todo mundo tem um número da sorte. O de Gael é sete, o meu é o vinte e oito. 

Sim, vinte e oito, por menos cabalista que pareça. Mas faz sentido pra mim, entende?

Eu nasci em um dia vinte e oito, numa noite de lua cheia que demorou vinte e oito dias para despontar. 

Quando completei vinte e oito anos, Gael foi picado por um escorpião no Saara. Quase acabou com a nossa vida. Ele sobreviveu.

Depois disso, marcamos nosso casamento. A única data disponível era dia vinte e oito de abril.

“Adivinha o número da nossa senha, Luna”, Gael esconde o papelzinho pálido no bolso da jaqueta e me conduz até o outro lado da sala de espera.

“Sete?”, digo, tomando a cadeira ao seu lado. 

“Não.”

“Vinte e oito?” 

“Passou longe.”

Encaro o monitor em busca de uma pista lógica, mas os números são tão aleatórios.

“Isso é maldade.” Cruzo os braços. “É cruel, na verdade.”

“O quê?” Ele dá um beijo debochado na minha bochecha. 

“O marido esconder da esposa grávida e impaciente quanto tempo ela ainda vai ter que ficar aqui plantada.”

Gael gargalha, e eu rio também.

“Você não existe, Luna.” Ele aperta a minha mão. “Saber o número da senha não faz com que nos chamem mais depressa.”

Dou de ombros e pouso a mão livre na barriga. “Tem razão. Mas diminui a nossa ansiedade. Não é, bebê?”

Nosso apartamento é perfeito para ele e eu. Somos só nós dois, nenhum cachorro, três suculentas na janela. Mudar para uma casa daqui a alguns meses vai ser estranho. Como diz minha mãe: até com coisa ruim a gente acostuma.

“Sete anos de casados. Lá vem o nosso bebê.” Gael sorri com doçura. Ele esfrega o queixo pontudo com o polegar, um tique que ele tem sempre que está ansioso. Eu sei exatamente o que ele está sentindo.

Há seis meses, um bebê era inconcebível. Literalmente. Tentamos por dois anos, frustramos com a demora e colocamos o sonho de lado. Seguimos com a vida, aos poucos acostumando nossas cabeças e nossos corações com a proposta de um futuro baião de dois, até que a morte nos separe. Mas o buraco ainda estava aqui, uma cratera na barriga e na alma que estava custando a ser preenchida com outra ideia que fosse. Eu me trancava no banheiro toda vez que o sangue vinha. Religiosamente, a cada vinte e oito dias.

Como viver sabendo que o sonho de Gael, um sonho que passou a ser o meu no minuto que o conheci, jamais se realizaria? Como conviver com uma pessoa que se preparou a vida inteira para viver uma realidade que nunca aconteceria? Nunca conheci um homem com tanta vontade de ser pai, pai que troca as fraldas nojentas de cocô, reveza as noites em claro com a mãe, cozinha para o bebê, leva para a creche. Se fosse biologicamente possível, aleitaria do próprio mamilo. Nesse nível.

Já eu, tinha pânico, t-e-r-r-o-r e agonia de parir. Submeter meu corpo a uma dor desconhecida e desnecessária. Expulsão natural ou cirurgia, nem era uma hipótese. Até que conheci Gael. O desejo latente em mim aflorou. Eu queria ser mãe.

Encarei três anos de terapia. A dor da faca ou a dor da força, preparei-me para lidar com o medo imaginário e conceber nosso sonho. Eu estava pronta, feliz, empolgada. Era tanto entusiasmo que a demissão de Gael em uma segunda-feira e depois a minha na mesma semana não foram motivos de luto. Nossos recursos financeiros cada dia mais enxutos, a crise econômica pior a cada minuto, nós dois endividados até o último fio de cabelo - nada apagava meu ânimo. Mas o corre-corre para sobrevivermos cessou a corrida para engravidar. 

Vendemos tudo o que pudemos. Ajustamos a rota e nos mudamos para cá. Focamos em reconstruir nossas vidas. Abortamos a ideia do bebê até nos estabelecermos. Tudo no jeito, nós retomamos. Tentamos, tentamos, tentamos. E nada do bebê. 

Cogitei persistir, desistir, fertilizar. Gael fazia questão que tudo fosse no estilo que será, será. 

E se não fosse?, me consumia.

Tudo bem, ele dizia, não é um projeto, é a vida. Felicidade é saúde em cima, nós dois em nosso apartamentinho novo sem nenhum cachorro e algumas plantas.

A determinação de uma pessoa termina onde a da outra pessoa começa. Desencanei.

No dia vinte e oito de agosto, noite de lua cheia, lá estava eu sentada no vaso sanitário. Pauzinho na mão, encarando a primeira barrinha. Meu queixo caiu quando a segunda linha sólida apareceu. Tremi. Seríamos nós dois, o bebê, nenhum cachorro, as mesmas plantas. Terapia nenhuma prepara a gente para as tramas da vida.

O monitor pisca o número quatro. Gael levanta triunfante e sorri.

“É o nosso número. Vamos.”

Que sorte, penso. Até que foi rápido. 

Caminhamos de mãos dadas até a sala de ultrassonografia. Feitos os exames, tudo normal, tudo certinho. Só não dá para apontar o sexo. Ainda.

“E a data do parto?”, pergunto com os pensamentos na fortuna deste bebê.

“Pelos meus cálculos,” a médica observa o calendário, “Vinte e oito de março.”

28-03.

2 + 8 + 0 + 3= 13. 

1 + 3 = 4.

Quatro. Um lindo menino ou uma adorável menina, regência pelo número quatro.

Quatro é um bom número da sorte, não é?”, viro-me para Gael, apreensiva. Ele planta um beijo carinhoso no dorso da minha mão.

Deve ser, querida. Para quem se identifica.”

“Bom, vai ter que ser.”

Pouco cabalista, é verdade. Mas, de alguma forma, vai fazer sentido para essa sementinha plantada aqui há quatro semanas. Ou há exatos vinte e oito dias.


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